domingo, 29 de maio de 2011

O Wikileaks, a ética e a deontologia jornalísticas


“As sociedades democráticas precisam de meios de comunicação fortes e o Wikileaks faz parte desses meios. Os meios de comunicação ajudam a manter o governo honesto. O Wikileaks revelou algumas verdades duras acerca das guerras do Iraque e Afeganistão, e desvendou notícias acerca da corrupção corporativa. (…) Por vezes os países precisam ir à guerra e há guerras justas. Mas não há nada mais errado do que um governo mentir ao seu povo acerca daquelas guerras, pedindo então a estes mesmos cidadãos para porem as suas vidas e os seus impostos ao serviço daquelas mentiras. Se uma guerra é justificada, então digam a verdade e o povo decidirá se a apoia.”
Julian Assange, fundador e editor-chefe do Wikileaks

O Wikileaks é uma organização internacional sem fins lucrativos, com sede na Suécia, fundada e liderada por Julian Assange, um activista digital, de nacionalidade autraliana, que usa a sua página na Internet para publicar mensagens de fontes anónimas, designadamente documentos, fotos, vídeos e informações confidenciais, retirados dos sistemas informáticos de governos, empresas e outras organizações, sobre assuntos sensíveis, tornando públicos factos, sentimentos e opiniões que, embora de interesse público, antes só existiam na esfera privada das instituições.
A principal missão do Wikileaks é estimular pessoas que tenham acesso a documentos secretos a torná-los públicos, destruindo segredos de estados e empresas, revelando práticas organizacionais e empresariais. Julian Assange diz que publica “destemidamente factos que precisam ser tornados públicos”. Apesar de a divulgação de segredos, historicamente, sempre ter sido exercida pela imprensa, a verdade é que, nos últimos tempos, o Wikileaks conseguiu ter acesso a uma quantidade impressionante de documentos importantes, entre os quais informações privilegiadas dos bastidores das guerras do Iraque e do Afeganistão e ainda, uma vasta troca de correspondência entre as diversas embaixadas dos Estados Unidos.

O WIKILEAKS NÃO FAZ JORNALISMO
A página do Wikileaks na Internet foi lançada em Dezembro de 2006. Um ano depois, já disponibilizava 1,2 milhões de documentos secretos em bruto, ou seja, sem qualquer tratamento informativo. Aliás, o Wikileaks não se destaca pelo tratamento dado ao conteúdo, que é divulgado sem critério nem edição, embora a organização fundada por Assange tenha a pretensão de abrir uma nova fronteira no jornalismo, ao oferecer a descontentes a possibilidade de fazer denúncias anónimas de uma forma que coloca em causa as fronteiras da ética e da deontologia jornalísticas. Por outro lado, fez mudar a noção de como lidar com assuntos considerados como confidenciais dentro dos governos. Aliás, já há especialistas em comunicação que acreditam não tardar muito para que a história da diplomacia no século XXI venha a ser ensinada em dois períodos de tempo distintos: antes e depois do Wikileaks.
Ao contrário dos editores dos meios de comunicação da imprensa, da rádio e da televisão, os editores do Wikileaks não fazem a mediação entre o acontecimento e o público – que é a principal tarefa dos jornalistas, seleccionando e interpretando os factos de interesse público. Aliás, perante o manancial de documentos despejados na Internet, quem tem feito o trabalho de procurar nesses documentos factos noticiáveis, traduzindo o seu significado para os cidadãos, sob a forma de notícias jornalísticas, têm sido precisamente os meios de comunicação tradicionais. Sem eles, o Wikileaks seria, talvez, um mero depósito de informação em bruto, não muito diferente de um arquivo nacional ou de uma biblioteca.
Uma segunda razão que afasta o Wikileaks do jornalismo é sua motivação. Jornalistas e activistas do ciberespaço parecem ter actividades de natureza semelhante: ambos procuram informação, em particular informação com dados inéditos. Mas os jornalistas também são movidos por outras forças: a ética, a sensibilidade e a responsabilidade social. Ao fazer uma reportagem, por exemplo, o verdadeiro jornalista tem a ética, a sensibilidade e responsabilidade social necessárias para não divulgar informações que possam pôr em risco a vida de crianças inocentes, ainda que essa atitude responsável possa prejudicar o seu trabalho, nomeadamente, diminuindo o impacto junto do seu público. Pelo contrário, o Wikileaks não se preocupa com as consequências da difusão dos documentos que coloca à disposição de todos na Internet. “O Wikileaks constrangeu várias das fontes das informações sensíveis que publicou”, lembra Helio Gurovitz, director de redacção da revista “Época”.

VIRAGEM HISTÓRICA NA DIPLOMACIA INTERNACIONAL
Com a divulgação de telegramas diplomáticos dos Estados Unidos da América, o dia 28 de Novembro de 2010 ficou marcado como um ponto de viragem na história da comunicação de massas e também na história da diplomacia e da política internacional. Para anunciar ao mundo um novo lote de documentos secretos, o Wikileaks associou-se a cinco grandes títulos da imprensa mundial, com quem acertou a divulgação programada dos documentos, causando a maior das perturbações nas representações diplomáticas de muitos países, pois foi possível saber, sem filtros, por exemplo, como é que o Governo de Washington faz diplomacia ou vê os líderes de outros países. O resultado foi um grande constrangimento para os EUA e a sua política externa. A grande façanha de Julian Assange foi escancarar as desavenças nas relações entre o Governo norte-americano e os demais países, inclusive alguns considerados “amigos”, para os quais era conhecido até então um discurso público de cooperação.
Os cinco grandes jornais e revistas – “Le Monde” (França), “The New Yorque Times” (EUA), “The Guardian” (Inglaterra), “Der Spiegel” (Alemanha) e “El País” (Espanha) – associaram-se à divulgação dos documentos do Wikileaks, tratando a informação. Essa divulgação pública, feita pelo Wikileaks e pelos meios de comunicação tradicionais, contraria, porém, as regras deontológicas do jornalismo, uma vez que os documentos em causa – e todos aqueles que são divulgados no “site” do Wikileaks – registam a particularidade de terem sido obtidos sem o consentimento das organizações a que esses documentos pertenciam.

QUESTÕES ÉTICAS E DEONTOLÓGICAS
Deste modo, podemos dizer que fica em causa a ética jornalística, ou seja, o conjunto de procedimentos éticos que regem a actividade do jornalista profissional, que têm a ver com a conduta desejável que as pessoas ou organizações que são objecto de notícia esperam de um profissional do jornalismo. Não são normas. São procedimentos da ordem do pudor, do bom senso e do senso moral, que dizem respeito aos valores morais.
Tal como o jornalista Mário Bettencourt Resendes(1952-2010), provedor dos leitores do “Diário de Notícias”, entre 2007 e 2010, podemos afirmar que as questões da ética jornalística estão a montante da deontologia jornalística, sendo que esta se refere a uma série de deveres, obrigações e interdições que regem a profissão de jornalista, as quais variam de País para País.
Em Portugal, as balizas que definem um exercício correcto da profissão estão definidas em dez pontos do Código Deontológico do Jornalista, em vigor desde 4 de Maio de 1993, os quais criam condições necessárias à existência de um jornalismo de qualidade. Porém, como adverte Mário Bettencourt Resendes, essas “condições necessárias” não são “forçosamente suficientes, sobretudo se os profissionais de informação encararem o Código Deontológico como é corrente interpretar-se a lei”, ou seja, entendendo que “tudo o que não é expressamente proibido é permitido ou, no mínimo, não é ilegal”. Ora, como considera Mário Bettencourt Resendes, “na actividade jornalística há inúmeras situações que estão a montante da deontologia e que remetem para uma ética da profissão, quando não para um simples julgamento que revele bom senso”.
O ponto número 4 do Código Deontológico que regula a actividade dos jornalistas em Portugal é muito claro quanto aos meios a que os profissionais podem ou não podem recorrer tendo em vista a obtenção de informação, afirmando que “o jornalista deve utilizar meios leais para obter informações, imagens ou documentos e proibir-se de abusar da boa-fé de quem quer que seja”. E o código acrescenta: “A identificação como jornalista é a regra e outros processos só podem justificar-se por razões de incontestável interesse público.”

O DILEMA ÉTICO
No “caso” Wikileaks levanta-se a questão de se saber se o interesse público da informação contida nos documentos seria susceptível de legitimar a acção publicitadora da organização e posterior tratamento e difusão por parte dos meios de comunicação tradicionais.
Por outras palavras, qual o papel dos meios de comunicação em relação ao Wikileaks? Será legítimo ou constituirá um serviço de responsabilidade social servir como braço mecânico e prolongado de quem surrupiou documentos secretos de gabinetes governamentais para colocá-los ao alcance de todos? Onde é que começa o acto criminoso e onde termina? O braço mecânico – ou seja, os meios de comunicação social que divulgam a informação secreta – tem vida própria ou segue a lógica inicial de quem tem acesso aos documentos de forma ilegítima?
Como acontece em relação a qualquer situação polémica, a divulgação pela imprensa dos documentos secretos tornados públicos pelo Wikileaks suscita as opiniões mais diversas. Há os que recriminam a imprensa pela divulgação e há também os que aplaudem a imprensa pela divulgação. A questão central é que um jornalismo com ética e com responsabilidade social jamais poderá acreditar que os fins (divulgar publicamente documentos confidenciais e não autorizados) justificam os meios (quebrar protocolos de segurança, infringir a privacidade alheia, roubar dados e informações).

O TERRENO DA TRANSPARÊNCIA
Ignacio Ramonet , antigo director do “Le Monde Diplomatique” e um dos estudiosos mais profundos, refinados e críticos do jornalismo convencional, considera que o Wikileaks “é o terreno da transparência” e que, nas sociedades contemporâneas, democráticas e abertas, “será cada vez mais difícil para o poder” manter uma dupla face, ou seja, “uma para fora e outra, mais opaca e secreta, para uso interno”. E embora recorrendo a meios de divulgação de informação secreta que não respeitam a ética, a verdade é que o Wikileaks, como sublinha Ramonet, foi capaz de revelar “que a maior parte dos Estados tinham um lado obscuro, oculto”, ou seja, desprovido de uma conduta ética.
Será que a revelação de informação secreta pelo Wikileaks pode, então, configurar uma situação de dilema ético, uma vez que, ainda que essa informação seja conhecida com base em meios ilegítimos, ela, afinal, acaba por revelar erros igualmente grosseiros por parte de governos e organizações que de outra forma não seriam conhecidos publicamente?
Vejamos uma situação extrema para exemplificar um dilema ético: uma mãe dividida entre salvar o seu filho ou várias crianças. A ética dos princípios poderia apontar que a vida, mesmo a de um filho, não pode valer mais do que a de algumas crianças. Já a ética da responsabilidade poderia evocar que a mãe tem a responsabilidade ética de proteger a vida do seu filho. Estamos perante um dilema ético quando estamos perante duas escolhas e as duas podem ser justificadas.
Para muitos especialistas, a saúde de uma democracia assenta, em grande parte, no papel de consciência crítica que o jornalismo representa. Numa sociedade democrática, a defesa da transparência, da verdade e da liberdade de expressão são inquestionáveis. A questão é saber se são inquestionáveis em todas as circunstâncias, nomeadamente quando ameaçam provocar consequências desastrosas, inclusive conflitos de âmbito mundial, colocando vidas em risco.

JULIAN ASSANGE: AMADO E ODIADO
O Wikileaks é uma ferramenta jornalística, no sentido em que promove a divulgação de informação de interesse público. Nesse sentido favorece o direito público de saber. Porém, a organização de Julian Assange não segue os princípios éticos do jornalismo tradicional, nem tampouco se preocupa com a qualidade do jornalismo, vertendo a informação na rede sem qualquer tipo de critério.
Entre a ética e a deontologia jornalísticas e o direito dos cidadãos à informação, parece evidente que o Wikileaks baralhou as fronteiras. Aliás, Julian Assange, que foi uma das figuras do ano de 2010, é, para uns, “o cavaleiro da transparência”, enquanto outros o consideram “um terrorista de alta tecnologia”. Amado e odiado, o fundador do Wikileaks defende-se: “O Wikileaks tem um histórico de quatro anos de publicação. Durante esse tempo mudámos governos, mas nem uma única pessoa, que se saiba, foi prejudicada. Mas os EUA, com a conivência do governo australiano, mataram milhares de pessoas.”

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bom, estou fazendo uma redação sobre o WikiLeaks, e achei a reportagem muito boa. Já estava na hora de alguem desvendar esse EUA..