A
“Dica da Semana” é o jornal de variedades da cadeia de supermercados alemã
Lidl. Na edição de 5 de junho de 2014, uma entrevista à apresentadora de televisão Bárbara Guimarães, que confessa estar transformada numa mulher “mais confiante”, é o tema de capa e das páginas centrais, presumivelmente os espaços editoriais mais importantes. No meio, como suplemento, a publicação traz um catálogo com preços e
promoções, num formato estrategicamente maior que o da “Dica da Semana”, talvez para que
possamos ver o logótipo do Lidl depois do jornal dobrado. Isto é o marketing de
conteúdo impresso aplicado à comunicação dos supermercados. Uma comunicação que
incorpora de forma híbrida diversas componentes outrora muito definidas. Nesta
publicação temos jornalismo, marketing, relações públicas e publicidade. Esta é
uma tendência global da comunicação das marcas, invadindo cada vez mais territórios que, no passado, eram exclusivos do jornalismo.
Na “Dica da Semana” nada é deixado ao acaso. Com uma distribuição gratuita nos supermercados e
em casa dos consumidores, o jornal está tão bem organizado do
ponto de vista editorial que até já tem edições regionais! Na imagem, por
exemplo, podemos ver a edição “Bragança, Chaves, Minho” – regiões do Norte de
Portugal. Uma organização assim era suposto pertencer ao universo dos jornais
administrados por empresas jornalísticas. Mas é de uma rede de supermercados
que estamos a falar. Isto indica-nos uma nova dimensão do jornalismo do futuro:
o “jornalismo de marcas”, ou “brand journalism”, em inglês.
A
ideia faz levantar os cabelos de muitos jornalistas profissionais, pois
recoloca na agenda a velha questão da fronteira entre o marketing e a
informação. Uma mistura entre os dois campos parece, no entanto, ser um caminho
sem retorno, que tem as suas bases na evolução do próprio marketing. É que os
consumidores exigem, cada vez mais, que as marcas sejam verdadeiras e
transparentes. Ora, nada melhor do que produzir conteúdos sérios para demonstrar a verdade e a
transparência como valores das marcas. Mas isto ainda só está no começo.
Um
grupo de especialistas de marketing reunidos em Miami, em 2012, abriu a
polémica. Saber se os agentes de relações públicas estão preparados para se
transformarem em jornalistas de marcas foi justamente um dos temas principais
da agenda de debates. “Quando os profissionais do marketing e relações públicas
defendem o jornalismo de marcas eles estão refletindo uma nova postura das
empresas, agora preocupadas em desenvolver uma imagem social para
contrabalançar os efeitos negativos da preocupação exclusiva com o lucro
corporativo. Esta é uma tendência generalizada entre as grandes e médias
corporações, principalmente as que já têm um pé fincado no comércio eletrônico”,
considera o jornalista Carlos Castilho, que escreveu para no portal do Observatório
de Imprensa do Brasil justamente sobre o “jornalismo de marcas" como “a
nova estratégia de relações públicas” (ver aqui: http://bit.ly/1kuVnJr).
A
análise de Carlos Castilho, que é professor e analista de meios de comunicação,
vai ao encontro das dúvidas que hoje invadem as redações jornalísticas um pouco
por todo o mundo e que põem em causa o jornalismo como o conhecemos no século
XX: “Hoje já não dá mais para ser tão enfático na afirmação de que os
jornalistas defendem os interesses do leitor, porque já é muito difícil dizer
quais são os interesses de quem compra jornal dada a enorme diversidade de
necessidades e desejos. Também já não é mais possível dizer que os jornalistas
defendem os interesses do público, porque a agenda da imprensa está
condicionada pelos interesses das empresas jornalísticas, o que não é segredo
para ninguém.”
Outra
observação importante, do mesmo especialista: “A diferença entre o jornalismo
profissional e o de marcas está cada vez menos no produto final e mais no tratamento
da informação e da notícia. O jornalista, seja ele funcionário de uma empresa
jornalística, um ‘free lancer’ ou até mesmo um praticante (não profissional),
começa a tomar consciência de que a notícia está deixando de ser uma ‘commodity’
— porque perde gradualmente todo o seu valor comercial por conta do excesso de
oferta informativa gerado pela Internet — para se tornar um dos fatores de
produção de conhecimento.”
Com
as marcas a produzir e difundir conteúdos informativos, o que será da
informação de interesse público, aquela informação que não interessa às marcas,
como é o caso da informação política ou da informação sobre os problemas de uma
comunidade urbana, da educação ou da justiça? Fica a questão. Uma coisa é
certa: o jornalismo profissional precisa de um debate sobre o seu futuro para
encontrar o caminho certo.