“(...) Alguns jornalistas ficam muito
irritados quando afirmo (e vou repetir) que um dos problemas dos dias de hoje
na vida pública em Portugal é a facilidade com que a comunicação social absorve
a linguagem do poder e a reproduz como sendo sua, assim legitimando-a porque
lhe dá um sujeito neutro, tornando-a uma verdade universal. Este processo não é
simples, não se trata de estar “a favor” ou “contra” o Governo, nem sequer de atuar
em função de preferências ou hostilidade partidárias, porque se fosse assim
seria mais fácil identificar o que se passa.
Há um papel importante para os gostos e os
ódios pessoais, mas isso faz parte do meio jornalístico desde sempre. O hábito
é ajustar contas em função das simpatias ou antipatias pessoais entre
jornalistas, políticos e outras personagens do espaço público, muito mais
eficaz como explicação do que as simpatias partidárias. A promiscuidade entre
jornalistas e “fontes”, a troca de favores e cumplicidades, as amizades e os
amores, as vinganças e elogios interessados passam-se de modo subterrâneo, mas
explicam muito da atitude de jornalistas face aos detentores do poder político,
atual ou passado. Ora pouca gente cultiva mais a sua relação com os jornalistas
do que os grupos dirigentes das “jotas” dos partidos, seja do PS ou do PSD,
cuja proximidade social, cultural, de mentalidade e modo de vida, é quase
total, e cuja partilha geracional de vocabulário (escasso), fragmentos de
ideias, mitos e (in)experiências é igualmente comum.
Muitas vezes estas empatias têm a ver com o
bem escasso da “influência” e os conflitos pela capacidade de a ter, outras
vezes é inveja por ganhos e recursos. O problema é que, sendo esta uma
explicação importante para muito do que se publica e se diz, ainda por cima em
meios muito pequenos, que comunicam entre si, e onde está sempre alguém no
lugar pretendido por outrem, ela é invisível para a comunidade dos consumidores
dos media, que desconhecem muitos dos meandros que estão atrás dos bastidores.
Explicava muita coisa, como se percebeu quando do “caso Relvas”, mas é na
maioria dos casos impossível de usar.
Há cada vez mais jornalistas e
jornalistas-comentadores mais próximos do poder, partilhando do mesmo
pensamento de fundo associado ao “ajustamento”, embora possam discordar e
algumas vezes serem até agressivos na crítica a aspectos de detalhe da
governação. O problema é que a concordância de fundo é muito mais importante do
que a discordância no detalhe e o núcleo central de legitimação do poder permanece
intocável.
A mentalidade adversarial da comunicação
social, já em si mesmo uma fragilidade, deu lugar a uma enorme complacência com
o poder. Uma das razões desta proximidade de fundo tem a ver com o papel cada
vez mais destacado da imprensa económica em tempos em que a “crise” é
dominantemente explicada apenas pelas suas variantes económicas. O predomínio
da economia levou a um avolumar do “economês”, uma variante degradada quer da
economia, quer da política. E esse “economês” favorece os argumentos de “divisão”
que têm tido muito sucesso no discurso público, fragilizando, no conflito
social, umas partes contra as outras. Este discurso da divisão é uma novidade
desta crise e uma das principais vantagens da linguagem do poder.
Colocar novos contra velhos, empregados
contra desempregados, trabalhadores privados contra funcionários públicos,
reformados da Segurança Social contra pensionistas da CGA, sindicalizados
contra “trabalhadores”, grevistas contra a “população”, e muitas outras
variantes das mesmas dicotomias, tem tido um papel central no discurso
governamental, que encontra na “equidade” um dos mais fortes elementos de
legitimação. Se se parar para pensar, fora dos quadros das “evidências”
interessadas, verifica-se até que ponto uma espécie de neomalthusianismo
grosseiro reduz todas estas dicotomias a inevitabilidades a projeções sobre o
“futuro” muito simplistas e reducionistas e que recusam muitos outros fatores
que deviam entrar na avaliação dessa coisa mais que improvável que é o
“futuro”. À substituição da política em democracia, com o seu complexo processo
de expectativas e avaliações, traduzidas pelo voto, ameaçando, como dizem os
“ajustadores”, pela “politiquice”, ou seja, as eleições, a “sustentabilidade”
das soluções perfeitas de 15 ou 20 anos de “austeridade”, soma-se a completa
falta de pensamento sobre o modo como as sociedades funcionam, que o
“economês”, que é má economia, não compreende.
A redução das análises correntes a este
“economês”, sem política democrática, nem sociedade, revela-se num fenómeno
recente que é a proliferação de livros de jornalistas com as receitas para
salvar o país, quase todos sucessos editoriais. Eles mostram a interiorização
profunda, em muitos casos prosélita, noutros mais moderada, da linguagem,
explicações, legitimações, amigos e adversários, proto-história e factos selecionados,
do discurso do poder sobre a crise. A isso acrescentam propostas em muitos
casos inviáveis em democracia e num Estado de direito, e cuja eficácia, mesmo
nos seus termos, está por demonstrar.
Esses livros favorecem a ideia de que o
“vale-tudo” que está por detrás da continuada sucessão de legislação
inconstitucional do Governo poderia ser a solução ideal “para Portugal”, que
infelizmente é “proibida” ou pela “resistência corporativa” dos interesses ou
por entidades como o Tribunal Constitucional, ou mesmo pela “ignorância” e
impreparação da opinião pública. Escreve-se como se não houvesse interesses
legítimos que o Estado de direito acautela, ou práticas brutais de
transferência de rendimentos e recursos, que tem sempre quem ganha e quem
perde, cujos efeitos na conflitualidade social tornam por si próprio
insustentável a sua manutenção. São de um modo geral muito complacentes com os
de “cima” e muito críticos dos de “baixo”, e dão pouca importância aos efeitos
de exclusão e diferenciação social que as suas políticas propõem, mas, acima de
tudo, ignoram sistematicamente que elas falham no essencial, ou seja, que são
ineficazes para os objetivos pretendidos.
A solução é, em vez de mudar as políticas,
acrescentar-lhes mais tempo e é por isso que o coro da “austeridade” para
décadas é cada vez maior e será ruidoso depois da troika mandar aterrando cá,
para mandar a partir de Bruxelas. Aliás, será um interessante exercício ver o
que nos diziam em 2011, sobre os resultados que já se deveriam ver em 2012, e o
milagre de uma economia pujante “libertada do Estado”, já em 2013, e que agora
é de novo prometida em 2014. Se diminuíssemos a dívida e défice em função das
“intenções proclamadas” para o ano seguinte, já estávamos a cumprir o Pacto
Orçamental.
Alguns jornalistas sabem que é assim, que a
linguagem do poder se estabeleceu de forma acrítica na comunicação social, e
aqui e ali tentam funcionar a contracorrente. Mas as redações estão muito degradadas,
com meios muito escassos, o trabalho precário, barato ou quase gratuito, pouco
qualificado, prolifera e o emprego está sempre em risco, pelo que a prudência
exige muita contenção. Por outro lado, o papel crescente da “comunicação”
profissionalizada, a que Governo e empresa, recorrem cada vez mais, exerce uma
pressão considerável no produto final da comunicação social, em particular na
informação económica. A isto se junta o proselitismo na Rede, nos blogues e no
Facebook, nos comentários anónimos, às claras ou em operações “negras” de
assessores militantes e amigos dos partidos do Governo, à procura de um lugar
ao sol, ao exemplo do que um destes operacionais revelou recentemente numa
entrevista à Visão.
Por isso, neste combate pelas palavras de
2014, o Governo parte em vantagem, não porque tenha razão, mas porque tem mais
meios e, pior ainda, conta com a força que num país pequeno, fragilizado, com
uma classe média empobrecida, com uma opinião pública débil, tem o discurso que
vem do lado do poder. Já acontecia com Sócrates, acontece com Passos Coelho.”
José
Pacheco Pereira, historiador e militante do PSD, partido que lidera a coligação
governamental, “Público”, 28-12-2013 :: Texto integral: http://bit.ly/1fTeU1C :: Título da responsabilidade
do blog COMUNICAÇÃO INTEGRADA
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