"No início a cena está vazia. Os intérpretes demorarão a chegar ao palco, vindos da plateia, onde estavam sentados, iguais aos espectadores. Despirão as roupas casuais que trazem e embrulhar-se-ão em puídos cobertores laranja. E ficarão por ali, a deambular, à espera que algo aconteça. À espera que seja não o tempo coreográfico, mas o tempo emocional a ditar as regras, as frases, os movimentos e a estrutura.”
Tiago Bartolomeu Costa, “Ípsilon”, 17-12-2010
Numa imprensa diária portuguesa em que predomina uma atitude passiva em relação à informação cultural, sendo notório que a maior parte dos jornais generalistas parecem estar subordinados à agenda de eventos e aos desígnios das indústrias culturais, não se assumindo como agentes impulsionadores da notícia, mas como meros difusores das actividades e das ideias programadas por artistas ou organizações, o suplemento semanal “Ípsilon”, do “Público”, é a excepção, apresentando-se como um produto de jornalismo cultural de qualidade, com notícias, reportagens, entrevistas e opiniões que revelam capacidade de iniciativa e de captação do pulsar cultural do mundo contemporâneo, e que fazem da publicação um mediador cultural do “nosso tempo” – na verdadeira acepção desta expressão.
As páginas do “Ípsilon” respiram as dúvidas e as contradições que marcam a pós-modernidade e as suas manifestações artísticas dominantes, assim como a relação interactiva entre a arte e o espectador. E expressam claramente o domínio dos EUA nas indústrias culturais, assim como ilustram a decadência europeia e, inclusive, a emergência do Brasil como pólo económico e cultural do século XXI. UM ESPELHO DO MUNDO CONTEMPORÂNEO
Em três edições consecutivas, que analisei, no último mês de Dezembro, o “Ípsilon” apresentou capas tematicamente distintas, mas reveladoras de um espelho do mundo contemporâneo. Na edição de 17 de Dezembro de 2010, é destacada uma peça de dança, do coreógrafo belga Alain Platel, em que os espectadores são desafiados a participar no espectáculo, traduzindo, afinal, o convite à proximidade e à interactividade de que a arte contemporânea é portadora, em absoluto contraste com a relação sacralizada entre as obras de arte e o espectador que marcou a arte moderna.
No dia 24, é destacado o novo álbum do “rapper” norte-americano Kanye West, considerado o melhor disco do artista e da música “hip-hop” de 2010 (embora, contraditoriamente, se refira também que “é irrelevante se este é o melhor álbum” do artista, sendo antes decisivo que tenha sido “o álbum em que ele atinge o cume em apoteose”…), cuja popularidade foi “ampliada via Twitter”, no ano “da afirmação definitiva das redes sociais”, dando-nos uma noção da força enorme da Internet como meio contemporâneo de difusão planetária das artes e dos artistas.
No dia 31, a capa do “Ípsilon” mostra um jovem a protestar perante um friso de polícias armados até aos dentes, “no fim de um ano que anuncia outro ainda pior”, para ilustrar uma análise aos movimentos revolucionários contemporâneos, que eclodiram em 2010 numa Europa fustigada pela crise, e que foram o ponto de partida para um artigo sobre uma música do britânico Derek Meins, que nos fala de uma geração farta da crise financeira e da ausência de respostas políticas adequadas.
A MEDIAÇÃO NUMA SOCIEDADE DE MASSAS
Como meio do jornalismo cultural, o “Ípsilon” cumpre uma instância de mediação numa sociedade de massas, sendo importante para seduzir o espectador não especialista, dando-lhe instrumentos que facilitem o seu contacto com as manifestações culturais. O jornalista, como mediador, deve ser aquele que é capaz de revelar de forma simples a complexidade de relações a que cada acontecimento está ligado. Na área da cultura, este trabalho, de grande importância social, interessa às indústrias culturais, em particular às instituições que vivem do mecenato, para quem é decisivo multiplicar os públicos através da visibilidade mediática, provando assim que são um bom investimento para qualquer mecenas, mas também interessa à indústrias cinematográfica, discográfica e livreira, que vivem da cultura à escala internacional como se de outra indústria qualquer se tratasse. É a era da cultura de massas em todo o seu esplendor, que se caracteriza pela transmissão em massa, através dos grandes meios de comunicação, de uma mensagem homogénea para públicos que, embora possam ser heterogéneos, possuem a mesma identidade de consumo de determinados produtos tidos como universais.
INFORMAÇÃO E ENQUADRAMENTO
Nesse contexto, o “Ípsilon” cumpre esse papel mediador, informando os leitores e dando-lhes o enquadramento sobre as obras de arte (o filme, o livro, a exposição, a peça de teatro ou de dança, etc.), praticando um jornalismo de carácter reflexivo, que é uma das marcas de sempre do jornalismo cultural, caracterizando-se pela sua análise crítica, que se traduz numa mediação que é feita “a priori” (antes de um concerto, por exemplo) e “a posteriori” (depois do concerto). Essa mediação, que pode ser positiva ou negativa, serve para ajudar a orientar o consumidor cultural. Com diz Edgar Morin, no livro “A Cabeça Bem Feita: Repensar a Reforma, Reformar o Pensamento” (2001), a função do jornalismo cultural é revelar de forma clara e acessível “que, em toda a grande obra, de literatura, de poesia, de música, de pintura, de escultura, há um pensamento profundo sobre a condição humana”.
Actualmente, o jornalismo cultural – cuja função social é fazer chegar a muitos o que estava restrito a poucos – tem de lidar com novos paradigmas que ameaçam a sua identidade histórica: por um lado, o culto às celebridades começou lentamente a substituir o debate de ideias, as críticas nas páginas culturais e a exploração de novas tendências artísticas, dominando as capas e os destaques; por outro lado, devido ao impacto social e cultural da Internet, o jornalista tem, por sua vez, de conviver com os criadores de conteúdos “online”, que muitas vezes são os próprios artistas, como fez Kanye West, para amplificar o seu novo disco através da rede social Twitter.
CARÁCTER REFLEXIVO E CAPACIDADE DE INICIATIVA
No “Ípsilon”, o carácter reflexivo e a capacidade de iniciativa são muito evidentes. O envio de um jornalista ao estrangeiro, por exemplo, sinaliza a importância que o jornal dá ao artista entrevistado e à sua obra. Nas edições avaliadas nesta investigação, o “Ípsilon” enviou jornalistas a Paris, para entrevistar o coreógrafo Alain Platel e o encenador Patrice Chéreau; à Alemanha, para entrevistar o escritor Günter Grass e o realizador francês Sylvain Chomet; ao Brasil, para entrevistar o músico Tony Belloto, no Rio de Janeiro, e o fundador do Teatro Oficina, Zé Celso, em São Paulo; e a Espanha, para uma reportagem sobre a exposição “Federico Fellini: O Circo das Ilusões”, no CaixaForum de Madrid.
Curiosamente, não há registo de enviados aos Estados Unidos, apesar de terem sido publicados trabalhos ocupando uma página inteira ou mais sobre música norte-americana (sobre Kanye West, Dave Sitek e as bandas MGMT e Menomena), sobre os livros de Saul Bellow ou a experiência performativa sobre a celebridade, de Joaquin Phoenix e Casey Afflecck. O que pode indiciar uma acção sofisticada das fontes de informação das indústrias culturais americanas.
Curiosamente, não há registo de enviados aos Estados Unidos, apesar de terem sido publicados trabalhos ocupando uma página inteira ou mais sobre música norte-americana (sobre Kanye West, Dave Sitek e as bandas MGMT e Menomena), sobre os livros de Saul Bellow ou a experiência performativa sobre a celebridade, de Joaquin Phoenix e Casey Afflecck. O que pode indiciar uma acção sofisticada das fontes de informação das indústrias culturais americanas.
Com um grafismo atraente, o “Ípsilon” prima também pelo seu carácter cosmopolita, urbano e pós-moderno, abrindo as suas páginas tanto à música erudita como à cultura popular – sendo de realçar, por exemplo, o destaque dado à emergência da cantora de jazz portuguesa Sara Serpa em Nova Iorque e à edição das “Biografias do Fado”, em “mais um passo no longo caminho da Unesco”, tendo em vista a classificação deste género musical português como Património da Humanidade. Ou à música erudita (entrevista a Pedro Burmester) e ao cinema independente distribuído por Luís Apolinário, que considera que o filme “Lola”, com os seus cinco mil espectadores, “correu muito bem”. Sem espaço no “Ípsilon” parece ficar o museu moderno, com as suas obras de arte tidas como sagradas, que só podemos olhar e contemplar. Afinal, o museu moderno contenta-se com a elite. Não precisa da massa de público que lê jornais. Essa massa cai na rede das indústrias culturais.
Um comentário:
Luís Paulo,
Consegues com uma pequena amostra (alguns números de Dezembro) fazer o retrato-robot do Ypsilon, e através dele traçar uma panorâmica do jornalismo cultural que vamos tendo entre nós. Parabéns.
Permito-me apenas observar que o Y a que te referes não é o que líamos tempos atrás. Hoje ele atravessa um dos seus melhores momentos, deixando no seu percurso números mais herméticos e elitistas para o consumidor cultural médio. Ao atenuar a apologia acrítica da cultura pop, nomeadamente da musical, em detrimento da reportagem e da entrevista ampliou o interesse pela sua leitura e desta forma aproximou-se dos leitores.
Vem ao caso ressalvar que o Y não vive isolado, tendo ainda (felizmente) por companhia, por exemplo a Actual, que também se tem esforçado por melhorar, replicando o que o Y também faz. Por exemplo, dando destaque a um tema por semana, deitando-lhe um olhar global. Sempre gostei da crítica literária que faz – a pouca que existe no nosso jornalismo – mas recentemente tenho-me deleitado com a coluna “Ideias e Debates” de António Guerreiro. Ainda guardo na memória e no saco dos recortes um artigo sobre o Feminismo. O desta semana não lhe fica atrás. Um tema recorrente, perturbante e sempre actual: O bipolarismo dos escritores geniais como é o caso de Celine e Pound, que se negaram a si próprios e aos seus pensamentos, abraçando ideais totalitários e idolatrando tiranos sanguinários como Hitler.
Artur Sá da Costa
Postar um comentário