Tarso Genro, figura de referência do Partido dos Trabalhadores (PT), força política que lidera a coligação governamental brasileira de Dilma Roussef, aponta o dedo ao capital financeiro globalizado, responsabilizando-o pela grave crise que afecta a Europa, por ter capturado os Estados e os partidos políticos, deixando-os prisioneiros das dívidas públicas. Diz que a austeridade não resolve a crise e considera que o Banco Central Europeu deveria financiar os Estados e as empresas e não os bancos.
Em entrevista ao “Público”, conduzida pelos jornalistas São José Almeida e Nuno Pacheco, Tarso Genro, que esteve na génese dos Fóruns Sociais Mundiais de Porto Alegre, foi ministro com Lula e refundou o PT depois do escândalo do “Mensalão”, sendo considerado um dos ideólogos da esquerda contemporânea, aponta também um caminho muito claro: os Estados têm de recuperar a sua força na produção de políticas públicas. No fundo, é preciso “substituir a utopia socialista do século passado pela utopia democrática altamente politizada”. Deixo aqui as linhas essenciais de um pensamento que considero iluminante.
“Todos estamos imersos num processo de globalização organizada pelo capital financeiro articulado mundialmente, que nos faz padecer de problemas análogos [no Brasil]. A nossa experiência de fazer o contraponto a esta dominação global é sair da crise crescendo, gerando empregos, fazendo uma transição da sociedade de baixo para cima com fortes instrumentos de inclusão social e educacional. A experiência brasileira diz-nos que adoptar a receita de recessão, de desemprego e de redução das funções públicas do Estado não é boa. Causa descoesão social, radicaliza a luta de interesses na sociedade, sectariza as lutas políticas e gera desconfiança da cidadania em relação à esfera da política e isso pode comprometer as instituições democráticas a médio e longo prazo.”
“Uma crise como a da Europa influi no Brasil. O que devemos é produzir bloqueios a esse contágio. Temos especificidades que podem formar um bloqueio forte. Temos um mercado interno em ascensão, que pode ser expandido por dez ou vinte anos. Temos riquezas naturais invejáveis e temos a possibilidade de combinar um modelo de desenvolvimento tradicional, originário da revolução industrial, do desenvolvimento clássico, com um desenvolvimento de ponta, de alta qualificação tecnológica. E temos organizações estatais muito fortes para organizar esse processo, como o Banco Nacional de Desenvolvimento, a Petrobras, o Banco do Brasil, a Caixa Económica Federal. O Estado brasileiro não foi depenado da sua capacidade de produção de políticas públicas. Isso dá-nos uma vantagem comparativa muito grande. E sabemos que não podemos apressar, que não podemos crescer 10% ao ano, não temos infra-estrutura que resista a isso. Podemos crescer 4 ou 5 % ao ano, sem surtos inflacionários e sem arriscar o processo de coesão social, que foi iniciado com o Presidente Lula.”
“A ideologia, a cultura e o modo de vida neoliberal constituem uma espécie de casca de uma sucessão de factos objectivos no desenvolvimento capitalista que teve duas consequências graves. A primeira é que o capital financeiro capturou os Estados e exerce uma força normativa brutal sobre os Estados, através do controlo que o capital financeiro tem das suas dívidas. Isto vem diminuindo a força normativa das Constituições e aumentando a do capital financeiro, obrigando que os Estados se organizem a partir do critério fundamental do pagamento da dívida. [A segunda] é que o projecto neoliberal produziu uma reorganização na estrutura de classes da sociedade, provocando uma espécie de fragmentação social muito maior do que acontecia no contrato social-democrático. Aí os sujeitos eram visíveis, eram as organizações sindicais das classes trabalhadoras, particularmente da classe operária, e as associações industriais que contratavam pactos sucessivos de desenvolvimento e de protecção social. Hojem, os trabalhadores e os partidos perguntam-se: quem são os sujeitos do contrato político e social actual? É o Banco Europeu? É a senhora Merkel como uma espécie de supervisora da União Europeia?”
“Um projecto alternativo tem de ser obra dos partidos políticos, que têm que se renovar e compreender que um programa para a esquerda tem que ser mundial. E, na minha opinião, baseado em dois pilares. A colocação, de novo, no centro, de uma visão de esquerda, da questão democrática, que está em risco na crise do projecto neoliberal. E tem que ser um projecto que aponte de maneira unitária para a recuperação das funções públicas do Estado. E isso significa retirá-lo da tutela do capital financeiro globalizado. Se isso não for feito, toda a política posterior a processos eleitorais irá conciliar com essa força normativa e nunca poderá aplicar o seu programa. Não é de graça que nós vimos sucessivos Governos de esquerda e sociais-democratas, com excepções na América Latina, a irem para o Governo e aplicarem as mesmas receitas do projecto neoliberal. O poder político que o capital financeiro exerce sobre os partidos, os bancos nacionais, os Estados, é incontornável.”
“O Banco Central Europeu poderia financiar as empresas e os Estados e não os bancos. Seria uma mudança extremamente importante. O financiamento aos países em crise devia ser canalizado para reorganizar a base produtiva.”
“Assim como o capital financeiro organizado capturou os Estados ele capturou também os partidos. Os partidos tornaram-se menos centros dirigentes e elaboradores de estratégias e mais passadores do pragmatismo necessário à sua sobrevivência. Não é uma questão de “maldade” dos partidos, é a força coerciva que é exercida pelo capital financeiro que vem destruindo a política – a política tem sido subsumida pela força do capital financeiro. E para que isso seja recuperado o primeiroa cto é um acto de consciência. Recorrendo a uma metáfora: temos de substituir a utopia socialista do século passado pela utopia democrática altamente politizada. E fazer com que os Governos e os partidos se possam comprometer com programas e cumpri-los. As boas construções sociais que o modelo social Europeu fez foi a partir de visões políticas.”
“Tenho sempre muita atenção com o centro democrático porque a nossa expriência no Brasil – e a actual situação europeia também coloca isso – é que é impossível fazer um Governo de mudança sem estabelecer um contrato político com o centro democrático que tem uma grande influência nos sectores médios da sociedade, que pode ser atraído para um projecto democrata, progressista e que não seja a dogmática neoliberal. Eu ganhei a eleição na primeira volta pelo PT contra os socialistas e os comunistas e chamei os partidos de centro e de centro-esquerda para governar comigo, fiz uma coligação. Aqui em Portugal, por exemplo, estranhei que no 1º de Maio houvesse duas manifestações, uma da CGTP outra da UGT. Sem querer dar opinião e respeitando os partidos – até já conversei com o Presidente Cavaco Silva, que respeito –, pergunto-me se não era de os partidos do centro democrático e da esquerda e o Partido Comunista fazerem um acordo de meia dúzia de pontos para tirar o País da crise e da órbita da tutela normativa do banco central alemão... Esse acordo não iria valorizar a democracia e a república em Portugal?”
Tarso Genro, Governador do Estado do Rio Grande do Sul (Brasil), “Público”, 06-05-2012
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