“Um dia o Sócrates telefonou-me, eu tinha escrito uma crónica em que falava das declarações do então treinador do Benfica, Camacho, que garantia que o clube jogava bem mas não metia golos. Relembrei que o objectivo do futebol não era “jogar bem”, mas meter golos, nem que seja com a mão. Comparava a situação com a do governo, dizendo que estava tudo óptimo, com o pequeno problema de não funcionar. Estava em casa e o telefone tocou. Atendi – ainda bem que fui eu, a minha mulher teria decerto descomposto o tipo a pensar que era um brincalhão – e escutei uma voz: “Daqui José Sócrates.” Ainda na dúvida se não era alguém a gozar comigo, ouvi: “Venho protestar consigo na minha qualidade de benfiquista e já agora de socialista”, e convidou-me a ir almoçar a S. Bento. Vou-lhe dizer uma coisa, ele surpreendeu-me. Olhe que a certa altura até me citou o Ruy Belo, e apropriadamente, com uma citação certa. Estava acompanhado daquele tipo que vinha do SIS, o Almeida Ribeiro, a partir daí telefonava-me muitas vezes. Eu sei que ele fazia isso a várias pessoas, porque quando morreu o Eduardo Prado Coelho li uma declaração em que ele dizia: “Era uma grande pessoa, uma grande figura, e até tinha um almoço marcado com ele.” Garanto-lhe que aquilo funcionava.”
“Nós é que construímos de facto a realidade através da observação, nós é que lhe damos sentido. Quando observamos não conseguimos tirar a nossa consciência como quem tira um sobretudo. Nunca saberemos como é o mundo real, e até que ponto ele coincide com aquele que construímos através da observação e com recurso à linguagem. Ao longo da história há muitos exemplos de que essa observação não era correcta. A infância é para mim esse momento de coincidência de nós com o mundo. É o problema do amor: nunca conseguimos alcançar o outro. Damo-nos mais com as pessoas com quem nos escapa sempre alguma coisa. Mas em relação ao jornalismo, quando observamos a nossa galáxia, percebemos que é uma entre milhões, que o nosso sistema está num braço modesto da galáxia e que o nosso planeta se encontra entre biliões de outros. Esta normalidade dá-me uma sensação de imensa paz, porque me permite relativizar-me a mim e aos meus problemas. Aprendi com os grandes tipógrafos, às vezes estava na chefia de redacção cheio de problemas com os títulos e eles diziam-me: “Não se preocupe que amanhã isto é para embrulhar o peixe.” A dimensão do infinitamente grande e do infinitamente pequeno dá-nos a consciência de que tudo é para embrulhar peixe.”
“A grande dignidade da vida e do jornalismo está em ter a consciência plena de que aquilo acaba a embrulhar peixe, mas fazê-lo o melhor possível em cada momento. Fazer o mais honesto, empenhar-se ao máximo, sabendo que é completamente irrelevante. É essa a grandeza do ser humano.”
“Um dos limites do jornalismo está na estridência. Mas para um jornalista e um escritor (costumo dizer que é uma roupa que nunca me serve bem e poeta muito menos, jornalista acho que me serve melhor) a matéria-prima é a mesma: a palavra escrita. Estas duas formas de escrita: uma para comunicar e outra para criar realidades, para convocar o mundo, têm muitos pontos de contacto. Uma coisa que eu aprendi no jornalismo é a humildade. Se conhece escritores, sabe que normalmente são tipos que acham que aquilo que escrevem é fundamental. No caso do jornalismo, como sabemos que aquilo que escrevemos no dia seguinte está a embrulhar o peixe, não é assim. No jornalismo aprendi essa humildade fundamental. Tenho de escrever, nas minhas crónicas, 1400 caracteres, o morto à medida do caixão – agora tenho-lhes metido o IVA, como aumentou, escrevo 1420. E meti-lhe o IVA baixo. Depois de escrevermos uma coisa, o coordenador corta e altera o título. O jornalismo é um trabalho colectivo. Isso dá-nos uma grande modéstia. O Luiz Pacheco dizia que daqui a cem anos ninguém se lembra. Qual daqui a cem anos... Mesmo na altura já ninguém se lembra. Os escritores têm muita dificuldade em aceitar que tudo acaba por se esquecer. Tudo tende para o esquecimento. Mas há mais relações, o jornalista aprende com o escritor o respeito pelas palavras, sabendo que há palavras que se dão com as outras, e outras não. Não calcula o tempo que demoro a escrever aquela merda com 1400 caracteres. Leio aquilo tantas vezes... Volto atrás e vou para a frente. Só a trabalheira de arranjar assunto. Eu, espontaneamente, só tenho opinião uma vez por ano, agora tenho de ter todos os dias porque ganho a vida assim. Nunca leio o que escrevi no dia seguinte, porque se o faço fico completamente frustrado.”
“Apesar de já (…) ter chamado Bokassa [a Alberto João Jardim, presidente do Governo da Madeira], ele nunca me pôs um processo e sempre que vinha cá telefonava-me para almoçar comigo. Os políticos tratam-me sempre bem. São umas putas velhas.”
Manuel António Pina, jornalista e escritor português, vencedor do Prémio Camões 2011, em entrevista ao jornal “i”, 18-02-2012 (documento na íntegra aqui)
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