Na década de 1970, o sociólogo e historiador norte-americano Richard Sennet escreveu “O Declínio do Homem Público - As Tiranias da Intimidade”, uma obra clássica da sociologia contemporânea, que percorre uma das questões mais polémicas do nosso tempo: a relação difícil entre o domínio público e o privado. Preocupado com o esvaziamento do espaço público, Richard Sennett pretende mostrar que a derrocada da vida pública – mediante uma prática social cada vez mais intimista –, resulta de uma mudança que começou na era Moderna, com a formação de uma nova cultura urbana e capitalista.
Sennet faz uma caracterização precisa e extremamente contemporânea do problema público, do que é o domínio público, e das inúmeras mudanças ocorridas nele, em especial em relação à intrusão dos sentimentos e ao exercício de uma cultura da personalidade, que subverte as relações sociais e que até modifica o sentido do que é o amor e a sexualidade para as pessoas. O objectivo é detectar os motivos que ocasionaram o surgimento de um espaço público morto. Nesse sentido, Sennett afirma que “foi a geração nascida após a Segunda Guerra Mundial que se voltou para dentro de si ao libertar-se das repressões sexuais”, tendo sido “nessa mesma geração que se operou a maior parte da destruição física do domínio público”, observa o autor.Vem isto a propósito da trapalhada em que se meteu o Presidente da República Portuguesa, Cavaco Silva, ao falar em público sobre um assunto de natureza privada: as suas pensões de reforma.
Com o declínio do Estado, que acontece todos os dias, cai também o homem público. E os problemas tendem a ser privados em maior número. Ora, Cavaco Silva deveria saber que neste mundo do narcisismo desvairado e da competição desenfreada, a privatização da existência assumiu proporções tais que o “eu” invade constantemente o já tão depauperado espaço do outro. E em Portugal, viver é cada vez mais difícil. Que o digam milhares e milhares de portugueses que são atirados para o desemprego ou que sobrevivem com reformas miseráveis, enquanto a saúde é cada vez mais cara, a energia é cada vez mais cara, tudo é cada vez mais caro.
O tropeção verbal de Cavaco Silva – curiosamente um grande defensor das políticas públicas e dos sectores mais pobres da sociedade, que sempre admirei – representa, assim, o declínio do homem público português. Que, à falta de uma ideia de Portugal que seja mobilizadora para o futuro, se perde à frente dos microfones – onde a pressão é muito maior do que quando se comunica através do Facebook... – a falar da sua sobrevivência pessoal de um modo absolutamente insensato, tendo em conta o rendimento da maioria dos cidadãos portugueses.
Cavaco quis colocar-se no lugar de outros portugueses como ele, que agora viram frustradas expectativas financeiras que legitimamente alimentaram ao longo da vida activa. O problema é que enquanto alguns ainda podem ver os seus rendimentos reduzidos que nunca passarão fome, a grande maioria já não poderá dizer o mesmo. Além disso, o Presidente não é um português qualquer, pois nem sequer precisa de fazer contas para viver para além de Belém. Porque nós até lhe pagamos tudo.
Por isso, as suas palavras foram muito mal recebidas, manchando fortemente a sua imagem pública mediática. Basta lembrar as vaias do povo em Guimarães – que significaram um prolongamento real das fotomontagens e dos comentários que povoam o Facebook e outras redes sociais, onde Cavaco Silva também comunica –, ou, principalmente, ouvir em privado o que dizem eleitores e dirigentes da sua base política de apoio para perceber a dimensão do desastre comunicacional.
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