sábado, 14 de abril de 2012

Os jornais e os seus públicos


Nos primórdios da comunicação de massas, em finais do século XIX, o filósofo e sociólogo francês Gabriel Tarde (1843-1904) foi o primeiro pensador a identificar como um público a massa anónima que lê um jornal: “Do mesmo modo que há, para todo o fornecedor, dois tipos de clientela, uma clientela fixa e uma clientela flutuante, também há dois tipos de público para os jornais ou as revistas: um público estável, consolidado, e um público instável.”
“Um leitor de jornal dispõe de mais liberdade do que um indivíduo perdido dentro de uma multidão”, afirma Gabriel Tarde, no livro “A Opinião e as Massas”, acrescentando: “O leitor pode reflectir em silêncio sobre o que lê, mudar de jornal quando não está satisfeito com aquele até encontrar outro que lhe agrade. Do outro lado, o jornalista deve agradá-lo e retê-lo utilizando as mais variadas técnicas de textos para responder às reacções do número de assinaturas, principal estatística de um jornal.”
Para Tarde, “o público é uma espécie de clientela comercial”. Explicando: “O simples facto de comprar roupas na mesma loja e frequentar o mesmo restaurante estabelece entre pessoas um vínculo social e supõe afinidades entre elas. A divisão de uma sociedade em públicos é inteiramente psicológica e sobrepõe eficazmente a divisão religiosa, económica, estética, política, escolar ou partidária. É impossível encontrar uma religião, seita, partido ou outro agrupamento de pessoas que não queiram ter um jornal próprio para agregar ainda mais os seus seguidores.”
No livro “A Opinião e as Massas”, Tarde ocupa-se em fazer entender de onde procede o “público”, como nasce e como se desenvolve. Tanto mais que não encontrou uma palavra em latim, muito menos em grego, que correspondesse ao que se conhecia por “público”, embora tivesse encontrado palavras correspondentes a “povo”, “assembleia de cidadãos”, “grupos eleitorais”, etc..
No século XIX, a industrialização da imprensa permitiu a Gabriel Tarde identificar, pela primeira vez, os leitores de um mesmo jornal como “um público específico”, embora, a partir da invenção da imprensa, no século XVI, já fosse possível o nascimento do público leitor de uma publicação. Tarde aponta como exemplo a bíblia: “Foi um efeito quotidiano, de leitura de um mesmo livro, que, ao mesmo tempo, criou um público e uma Igreja, aproveitando o enfraquecimento do protestantismo.”
Foi, porém, na sequência da Revolução Industrial, que surgiu o advento do jornalismo e, por consequência, do público leitor. No século XVIII, a esfera pública ganhou uma eficácia política, fazendo frente à autoridade monárquica. Associado a este processo de democratização da vida pública esteve o nascimento e o desenvolvimento da imprensa, com capitais privados, por iniciativa dos burgueses – a classe mais esclarecida da sociedade e, portanto, a mais interveniente, funcionando como um público activo. A partir de meados do século XIX, nomeadamente em Paris e Londres, a publicação e distribuição de jornais a preços reduzidos, e dirigidos a públicos numerosos e heterogéneos, marca o início da fase industrial e da comercialização em massa da imprensa.
Um jornal tornava pública uma discussão (princípio da publicidade) e fazia com que novas discussões se iniciassem. Emergia o espaço público literário e politicamente orientado, sobre o qual teorizou Jürgen Habermas. O espaço público era uma emanação da sociedade civil, de uma burguesia culta e erudita, que reflectia sobre as coisas. Segundo Habermas, esse espaço público teve origem na Europa ocidental dos séculos XVII e XVIII, quando a burguesia começou a utilizar a esfera pública para questionar o monopólio estatal da problematização e tematização da coisa pública. O espaço público nasceu como mediador entre o domínio privado da economia e o domínio público do Estado.
“O que o mundo passou a ver foi um eclodir imenso e imaginário de jornais. Cada um desses jornais tinha o seu próprio público”, observa Gabriel Tarde, considerando que da multidão ao público há “uma distância imensa”, embora o público proceda em parte de uma espécie de multidão: “Entre os dois ainda existem muitas diferenças: pode-se pertencer ao mesmo tempo a vários públicos, mas apenas a uma multidão de cada vez. Com isso fica claro que o encontro de dois públicos prontos a fundirem fronteiras indecisas é um perigo bem menor para o mundo do que o encontro de duas multidões de pensamentos opostos e rivais.” 
Para Gabriel Tarde, o “público” é formado socialmente, ao contrário de uma multidão, que se forma geograficamente. Por isso, a imprensa estaria a criar públicos, pois permitia que pessoas afastadas geograficamente pudessem estar vinculadas através da partilha de ideias.
O conceito de “público” é, porém, difícil de definir. A “instabilidade do conceito” levou justamente muitos investigadores a preferirem a expressão “sociologia da recepção” (Jean-Pierre Esquenazi, no livro “Sociologia dos Públicos”), por lhes parecer mais seguro definir o objecto de um inquérito através de uma determinada actividade do que através de um conjunto de pessoas mais ou menos dispersas.
Para Isabel Babo-Lança, especialista em sociologia da comunicação da Universidade Lusófona do Porto, o “público” é formado por particulares que se empenham em regimes de acção pública, em resultado de uma acção política, de um programa televisivo, de uma obra teatral, de um problema público.
Nesta perspectiva, os públicos emergem como entidades diferentes das audiências. As audiências são tratadas como passivas, apáticas e incapazes de formar juízos próprios e bem informados. No dizer de Mauro Wolf, no livro “Teorias da Comunicação”, a massa é a jurisdição dos incompetentes. Já o público é representado como um colectivo activo, bem informado, crítico e relevante do ponto de vista político.
Mas uma audiência pode ser entendida como um público. O exemplo mais comum de um tipo de audiência que é um público é precisamente o conjunto de leitores de um jornal, como aponta Denis McQuail, no livro “Teoria da Comunicação de Massas”. Porque um jornal pode contribuir para a construção de uma identidade. E os leitores expressam a sua identidade política, social ou cultural pela escolha de um jornal em vez de outro.

Nenhum comentário: